Era uma vez em Seattle

 


“A cidade me excita diariamente, como uma nova namorada.”

— Tanto faz, Reinaldo Moraes.

Era uma vez em Seattle.

Prólogo.

— “Pearl Jam ou Nirvana?”, perguntei. Ela respondeu “Nirvana”. Isso partiu o meu coração imediatamente. E foi assim que tudo começou!       

Anos noventa, os loucos anos noventa…

— Já estou derrotado, e olha que hoje é só uma terça-feira. Chove muito, irrelevante informação, já que nesta cidade chove um dia sim e no outro também. Na MTV está tocando “Jeremy”, já devo ter ouvido essa do, Pearl Jam umas doze vezes nas últimas vinte e quatro horas, não me queixo, não canso dela. E deve estar se perguntando por que falo sozinho? Falo sozinho, porque a mulher que amo me deixou… Isso foi há alguns meses, e já me curei deste coração partido, mas histórias devem ser contadas, sejam elas com finais felizes ou não. E a minha, o final foi um verdadeiro desastre. Senta no sofá, que lá vem história…

Capítulo 01.

— A cara foi foda, eu estava aqui nessa mesma mesa, sabe, bebendo meu vinho, o DJ da casa estava inspirado no dia, só tocava velharias, coisas ótimas antigas, como Marvin Gaye, Leonard Cohen, Frank Sinatra. Aí um casal naquela mesa lá do fundo, um cara gritou: “Toca Nirvana, caralho!”, e o DJ da noite retrucou: “Se você quer ouvir grunge, vá para uma boate, aqui é um restaurante, porra!” Foi hilário, me senti em um daqueles episódios do Seinfeld…

— Porra, cara, falando em Seinfeld, já consegui os VHS da primeira temporada. Cara, o episódio da garota que tem namorado e aí dorme no apartamento do Jerry é sensacional.

— Porra, esse é o primeiro episódio…

— Sim, e já começa arrebentando.

Enquanto os dois amigos discutiam seus episódios favoritos do seriado do comediante Jerry Seinfeld, uma garota adentra o restaurante. Uma linda princesa de um metro e sessenta, cabelos curtos e pretos, usava óculos de grau redondos que combinavam muito com o seu delicado rosto. Ela também vestia uma calça jeans larga e rasgada, e sua camiseta branca estampava o logotipo do “Tears for Fears”. Os dois solteirões de trinta anos logo notaram a presença da moça.

O que contava a história do DJ que não tocava grunge em um restaurante de Seattle se chamava Eddie. Sim, como o nome do vocalista do, Pearl Jam. Na verdade, seu verdadeiro nome era Edward, mas como ele era um grande fã dos Pearl, adotou esse apelido para si. O outro rapaz se chamava Robert. O primeiro era um músico frustrado e estava tirando um ano sabático para repensar a vida, o que ele podia fazer graças à sua família muito rica do Canadá, parte dessa vida que ele não costumava revelar para ninguém. O segundo era engenheiro eletrônico e acabara de se formar para trabalhar na Microsoft. A linda moça, chamada Rebeca, tinha se mudado para Seattle para trabalhar na sede da gravadora Sub Pop. Sempre que alguém lhe perguntava o que fazia lá, ela respondia fazer várias coisas, já que nem ela sabia ao certo qual era sua função ou profissão. Os dois amigos apostam em qual deles abordaria a pequena e linda moça primeiro, tirando par ou ímpar. O coração de Eddie gela quando ele perde, mas eles haviam decidido que a aposta seria travada em um melhor de dois. Na segunda chance, Robert é quem perde o jogo.

— Ah, não, isso não! Perdi e, no final, deu empate em probabilidades matemáticas, então temos que mudar o jogo.

— Qual jogo? Não me lembro de algum outro…

— Já sei, cara ou coroa, e eu escolho cara.

— Eu não tenho nenhuma moeda aqui comigo.

— Ah, só tenho cartão de crédito, cara…

— E quem paga as faturas? Será que elas já vêm pagas do além?

— Tenho minhas economias da época da banda.

— Sua banda lançou apenas um único disco que nem vendeu tanto assim. Se tivesse vendido, já teria sido lançado em CD, e nem isso aconteceu…

— Cara, joga logo essa moeda aí, vai.

— Espera aí, deixe-me ver se ainda tenho alguma sobrando.

Robert joga e ganha, Eddie perde no melhor de dois dessa vez. O amigo vai até a garota. Quando ele se aproxima, Eddie fica nervoso e volta para sua mesa.

— Cara, por que você voltou tão rápido?

— A fã de Tears for Fears é muito bonita para mim. Gelei na hora que fui falar com ela, sei lá. Deixa pra lá…

— Cara, você é muito nerd bobão.

— Vai lá falar com ela, então, roqueiro gostosão.

Eddie podia ser roqueiro, mas, atualmente, ele nem parecia mais um. Com suas calças jeans bem passadas e sem rasgos, camiseta preta lisa e tênis “All Star”, ele parecia mais um universitário de meia-idade, o que ele pensava em ser ao voltar para a faculdade de história que abandonara anos atrás, devido ao fim de sua banda. Ele finalmente toma coragem e vai falar com a garota quando percebe que ela não está mais sozinha. Várias pessoas se juntaram à mesa dela. Quando ela se levanta e vai até o bar pegar mais uma bebida, Eddie se aproxima e diz: “Pearl Jam ou Nirvana?” Ela responde: “Nirvana.” Ele complementa: “Isso partiu meu coração, mas já amo você.” “Que fofo”, ela responde e pergunta: “Como é o seu nome?” Ele diz: “Eddie. E o seu?” “Prazer, Rebeca.”

Capítulo 02.

Eddie tinha o hábito de acordar tarde todas as manhãs. Para ele, acordar cedo era coisa de trabalhadores e estudantes, pessoas que tinham um propósito na vida. Como ele ainda não havia encontrado o seu propósito, preferia passar as manhãs dormindo e as noites e madrugadas vendo filmes, seriados e bebendo vinho. Ele estava segurando aquele pequeno pedaço de papel com o número de telefone de Rebeca nas mãos por horas. Estava completamente apaixonado por ela, mas não queria parecer carente. Embora estivesse nessa situação há algum tempo, desde que entrou em seu período sabático, ele não havia ficado com ninguém por mais de vinte e quatro horas. No entanto, agora ele queria a garota para ele e desejava passar o máximo de tempo possível com ela. Eddie finalmente toma coragem e liga para Rebeca. Ele a convida para tomar um drinque em sua casa, mas imediatamente se arrepende. Ele achou que não deveria ter feito esse tipo de convite e que seria melhor convidá-la para almoçar ou para assistir a uma banda local em um “Pub” à noite. Convidá-la para sua casa parecia estúpido. Mas, para sua surpresa, ela aceita o convite.

— Estou trabalhando agora, mas assim que der eu vou sim. Deixa-me anotar o seu endereço aqui.

Eddie morava em um pequeno apartamento, que estava sempre bagunçado e com um cheiro forte de incenso indiano. Ele costumava acender o incenso para tentar purificar o ar e eliminar o cheiro de mofo que o apartamento tinha quando ele se mudou.

— Ah, que legal. Seu apartamento fica aqui perto da gravadora…

— Você trabalha na Sub Pop? — Eddie pensou consigo mesmo que o número de telefone não era estranho, mas não conseguia se lembrar de onde o conhecia, então preferiu não comentar nada.

— Sim, esqueci de te contar, eu sou uma espécie de “Produtora executiva, assessora do departamento de logística e marketing”, algo assim. Tanto faz, quem liga… logo, logo estou chegando e vou levar um vinho.

Eddie achou aquela garota realmente estranha, mas ele próprio não era nada convencional, assim como a maioria das pessoas naquela década e cidade. O Nirvana, uma banda tipicamente “punk”, havia acabado de estourar e varrido das rádios e da MTV bandas consideradas bregas, como Poison, Tuff, Warrant e os irmãos Nelson. Eddie gostava dos Guns N' Roses e chegou até a gravar o clipe de “November Rain” em uma de suas coleções de fitas VHS, que continham apenas videoclipes.

Capítulo 03.

Ela chegou, ele nem arrumou o apartamento, o que iria arrumar? Essa bagunça fazia parte da sua vida e personalidade, só jogou para debaixo da cama as revistas Playboy. E procurou nas gavetas por camisinhas de sabor morango; todas as mulheres com quem estivera adoraram. A garota trazia consigo uma garrafa de vinho canadense. Embora também fosse canadense, Eddie odiava tal tipo de vinho. Também tinha em suas posses um livro que estava lendo. O livro era “Snow Crash”. Ele comenta que já havia lido “Neuromancer”, do William Gibson, e não entendeu nada. E se fizessem um filme sobre ele, provavelmente também não iria entender. Ela demonstra como adorava a temática cyberpunk e como ele deveria dar uma chance para aquele livro de Neal Stephenson. Ela o achou estranho, porém fofo, e isso a cativou. Ele achou engraçado o nome do livro, pois lembrava o nome de sua antiga banda, mas preferiu não comentar.

— Então o meu nome é Rebeca, mas pode me chamar de Becky.

— Esse nome não seria uma gíria para heroína ou cocaína?

— É como sabe disso?

— Estive em uma banda na maior parte da minha vida. Às vezes penso que foi uma tremenda perda de tempo, mas aprendi coisas divertidas…

— Então meu apelido não vem da heroína, não, e sim da cocaína que costumava usar nos banheiros da escola.

— Depois desta importante informação, a partir de agora só vou te chamar assim…

— Fico imensamente agradecida…

Capítulo 04.

A garota era realmente encantadora. Sua inteligência e sagacidade lhe davam um charme a mais. Para os desavisados, sua carinha de adolescente travessa faria achar que ela seria uma, mas nos altos dos seus vinte e cinco anos, era uma mulher vivida e muito bem resolvida. Primeiro ela contou sobre como veio de New York trabalhar, sei lá, qualquer coisa na gravadora “Sub Pop”. Ele, por sua vez, deixou claro que eles lhe deviam dinheiro pelas vendas de discos de sua ex banda, que nunca viu um centavo.

— Então eu faço de tudo um pouco lá, sabe, mas não sei nada do setor financeiro, e artistas anteriores à minha entrada, também não faço ideia.

— Não estou te cobrando nada, apenas queria que soubesse, caso me visse entrar lá com o meu bastão de beisebol e cobrasse a minha dívida.

— Quando fizer isso, me avise, para que eu possa levar uma máquina fotográfica e registrar tudo; as revistas iriam adorar comprar essas fotos.

— Vou exigir meus direitos autorais das fotos também.

— Claro, você é o artista aqui e tem todo o direito. E agora que não está mais em uma banda, trabalha com o quê?

— Em nada, estou vivendo em um período sabático. Era para ter sido só um ano, mas lá se vão dois, quase.

— Começou seu “período sabático” no final de noventa, e por que não acabou ainda? Já são mil novecentos e noventa e dois, um terço da década já se foi…

— Porque ainda não encontrei um sentido para minha vida…

— E como vem se sustentando esse tempo todo? Não vai me dizer que é cafetão ou vende drogas? Sua antiga gravadora te deve dinheiro, nunca chegou a ser famoso fora da cidade, como ainda tem dinheiro guardado daquela época?

— Pior que isso, eu sou comentarista de cinema, não é brincadeira... Aí que tá, isso já é uma longa história...

— Pode me contar. Já falei demais de mim e minha vida; agora é sua vez.

— Quem sabe em outro momento...

— Não garoto, não vai fugir de mim assim. Me convidou para conversar, estou aqui na sua casa, sou toda ouvidos, tenho a noite inteira.

Capítulo 05.

Ele começa sua história até aquele momento, mas sempre evitando falar de sua família rica no Canadá. “Então, era fim dos anos noventa, nosso vocalista tinha acabado de morrer por overdose de heroína. Uma banda que perde o seu vocalista está sempre fadada a acabar, pois na história do rock, só conseguiram continuar, sei lá, talvez o AC/DC somente; não lembro de outra. Eu até que era um guitarrista requisitado, mas não estava muito mais afim daquela vida. Nunca cheguei a experimentar heroína; sempre fui mais de álcool e pó. Na banda, todos estavam muito viciados nessa merda, aí não dava mais. Eu guardei minha guitarra no case, e lá ela está até então. Mudei meu visual, cortei o cabelo, e hoje estou aqui.” “Já ia me esquecendo, então veio o Nirvana e estourou. Se nós tivéssemos continuado, estaríamos aí tão grandes quanto eles. Rock alternativo hoje é cool, é a nova onda do momento, mas quando estávamos na estrada, enchíamos bares com quinhentas a mil pessoas. Tocamos muito na cidade e fora, principalmente no Canadá; lá somos meio que famosos.”

— Você é canadense, não é? Percebi pelo sotaque.

— Isso, Quebec, nascido e criado lá.

— E como um guitarrista canadense veio parar em uma banda grunge de Seattle?

— Da mesma forma que uma jornalista de New York veio parar aqui. Estamos nos anos noventa, e em Seattle é onde tudo acontece...

— Ainda não contou do que vive atualmente?

— Fizemos muitos shows e ganhamos muita grana quando estávamos no Canadá. Lá foi a nossa última turnê, quando o vocalista morreu. Pudemos ter quebra de contrato e não pagar nada pelas apresentações canceladas; uma pessoa da banda morreu, era o mínimo. E quando todos preferiam gastar a grana com drogas e mulheres, eu preferia guardar. Até hoje tenho um pouco. Também escrevo umas resenhas de filmes para umas revistas especializadas em cinema. Meus pais me ajudam um pouco, e é isso. Eu sei que um homem de trinta e três anos não é mais um adolescente, e não pode viver como tal vida toda. Mas é isso, no verão eu volto para a faculdade de história em Quebec.

Capítulo 06.

Ao raiar do dia, Becky foi embora. Deu um beijo no rosto de Eddie e se despediu com um forte abraço. Ele até tentou pedir um táxi para ela, mas ela disse que a gravadora ficava perto e iria a pé mesmo. Ele se apaixonou por ela perdidamente após aquela noite. Então foi dormir. O cheiro dela estava por toda parte, e ele adorou a sensação. Pegou no sono rapidamente. Sua mãe, que sempre ligava às quartas-feiras, fez o de sempre. Ligou depois das duas da tarde, que era o horário habitual do seu filho acordar, de ressaca e resmungando da vida. Mas, para sua surpresa, dessa vez ele só estava de ressaca mesmo.

— Você não vem mesmo para o casamento de sua irmã?

— Mãe, ela já se casou três vezes nos últimos cinco anos.

— E você foi só no primeiro…

— E já não está valendo para todos?

— Para de ser insensível, sabe que sua irmã mais nova te adora.

— Eu também gosto da maninha, mas não tenho saco para viagens. Não agora…

— E quando vai se casar? Já tem quase quarenta anos, e não está mais perdendo tempo brincando de ser músico. E já está mais que na hora de se casar.

— Eu vou me casar um dia, já até encontrei a noiva ideal.

— Já me disse isso anos atrás e não se casou.

— Deve ser porque ela me deixou…

Capítulo 07.

Era mil novecentos e noventa, a banda de Eddie, “Snow-coke”, estava se apresentando em Quebec pela primeira vez. Seu primeiro álbum havia sido lançado lá meses atrás, por um pequeno selo independente de música alternativa, e já estava praticamente esgotado. A banda estava em sua passagem de som em uma grande casa de shows. Uma garota de cabelos ondulados, magra, punk e com muita maquiagem no rosto, se aproximou. A linda punk, que mais parecia com a personagem “Morte” dos quadrinhos do Sandman, perguntou:

— Você tem um pouco de heroína aí?

— A banda se chama “Snow-coke”, e não “Snow-heroin”.

— Nosso, como você é engraçado. Olha só como não paro de rir, babaca!

Eddie percebeu que falou besteira e tentou se justificar.

— Foi só uma brincadeira, não tenho heroína, só pó.

— Pode ser, te faço um boquete em troca de um trago.

— Não ia cobrar, mas já que insiste.

A partir daquele dia, os dois ficaram juntos pelos próximos três meses, transando, brigando, transando, usando drogas, transando e brigando. O que os unia era o sexo. Ele queria casar com ela para nunca mais perder aquela maravilhosa mulher que ele tinha. Mas chegou um momento que não deu mais.

— Você é só um menino mimado, filhinho de papai que acha que é “Rock Star”. Você não passa de um tremendo idiota. Eu vou embora.

Depois daquela última briga, eles nunca mais se viram. A banda acabou naquela mesma semana, com a morte do vocalista. Eddie voltou para Seattle e nunca mais contou para ninguém sobre a vida financeira de sua família, já que seus pais eram donos de um dos maiores bancos do Canadá.

Capítulo 08.

Já eram seis horas da tarde, mas para Eddie, era hora de tomar seu café da manhã. Ele estava em uma lanchonete tomando seu café preto e lendo um jornal. Lá, ele se informava sobre quais filmes entrariam em cartaz naquele fim de semana, assistia-os e enviava as resenhas por correio na segunda-feira. Ele era bem pago por isso, e era prazeroso para ele. Depois de mulheres e música, cinema era uma das suas preferências. Robert entra e vai ao seu encontro.

— E aí, cara.

— Fala. E aí, o que de importante fizeram hoje na Microsoft?

— Criamos um dispositivo de viagem no tempo.

— Interessante.

— Claro que não né! Apenas fazemos sistemas operacionais para computadores.

— Odeio computadores. Nada vai tirar de mim uma boa e velha máquina de escrever, caneta e papel. Quem sabe um dia escreva um romance…

— E aí, cara, comeu ela ou não?

— Ela quem?

— Não se faz de besta, aquela menina branquinha do restaurante, a da camiseta do Tears for Fears.

— A Becky… claro que não.

— Esse é o nome dela? Quem se chama Becky?

— Seu verdadeiro nome é Rebeca, mas prefere ser chamada de Becky, e é uma longa história…

— Você e suas longas histórias que nunca são contadas.

— Um dia quando lançar meu livro de memórias, quem sabe elas serão contadas e você lê. Estou apaixonado por ela, cara!

— E por que não a comeu?

— Porque não tivemos tempo.

— E o que fizeram a noite toda para não ter tempo?

— Ficamos conversando… Cara, estou pensando em escrever um roteiro de um filme, uma mistura de máfia italiana e filmes de kung fu, o que acha?

— Eu acho que você é louco!

“É, talvez eu seja”, ele pensou.

Capítulo 09.

Era noite de sexta-feira. Eddie e Becky foram ao cinema ver o filme “Espião por engano”, sobre um jovem americano em uma viagem à França confundido com um agente especial disfarçado. Um verdadeiro filme “Trash” que tenta ser “Mainstream”, pegando como protagonista aquele moleque moreno com cara de “Bad Boy”, do seriado “Anjos da lei”. Não o Johnny Depp, o outro, o Richard Grieco. Claro que Eddie, “adolescente” em corpo de homem de trinta anos, adorou o filme, mas Becky achou bobo.

— As revistas te pagam para resenhar esses tipos de filmes?

— É o que a rapaziada assiste hoje em dia.

— É só que nós não somos mais adolescentes há bastante tempo…

— Infelizmente, e nem me lembre disso…

— Sabe que ouvi falar super mal de você, lá na gravadora.

— É, as pessoas falam mal de mim o tempo todo. É que as regras foram feitas para serem quebradas, e estou aqui para que isso seja cumprido.

Capítulo 10.

Ao pegar um táxi e irem para o apartamento de Eddie, ele avista e lê uma frase no muro pichada, que dizia o seguinte: “Nenhum sucesso no mundo vale o preço de ficar longe de quem se ama.” Sucesso é uma coisa que ele nem buscava mais, e já amava Becky. Mas ela, será que o amava? Homens tinham tendência a serem mais emotivos, e talvez um pouco possessivos, ainda mais os como ele, que recusavam crescer.

Capítulo 11.

Eles estavam em casa, já era tarde da noite, bebendo uísque e filosofando, até que a garota faz um pedido inesperado.

— Nossa, que vontade de um teco.

Ele fica apreensivo. Seria aquela linda boneca mais uma louca e junky drogada. “Fazer o que, sou autodestrutivo e só me interesso por garotas assim”, ele pensa.

— Então, não tenho pó aqui.

— E por que não? Que espécie de músico é você?

— Eu nem sou mais músico.

— Tá, retiro o que eu disse. Reformulando a frase: que espécie de roqueiro é você? Assim está bom?

— Eu também não sou mais “roqueiro”, Becky…

— Cara, cadê o seu discurso de que as regras foram feitas para serem quebradas, e blá, blá, blá…

— Está bem, sei quem tem, posso comprar, mas é que não cheiro mais…

— Eu também não, mas é que me dá vontade de cheirar quando estou excitada.

Ele realmente nem cheirava mais. Não tinha drogas em casa, nem quando fazia uso delas, e o verdadeiro motivo era que seus pais lhe diziam: “Se quer usar drogas, use, mas use na rua, porque se for pego em uma batida e encontrarem drogas em casa, você vai ser preso e ficará lá, não vamos pagar um centavo de dólar para tirar você da cadeia.” Por isso ele nunca tinha drogas em casa, mas foi comprar.

Capítulo 12.

Ao chegar na porta de um bar, que estava lotado de pessoas vendo mais uma banda tocar, ele vai direto à pessoa certa, o rapaz que vendia todo tipo de drogas e sempre tinha a pronta entrega. No entanto, o único problema dele era que achava que sua vocação seria ser comediante, como “George Carlin” ou “Jerry Seinfeld”, algo que ele não era e nem passava perto.

— E aí, cara, você tem farinha?

— Quer farinha pra quê, vai fazer uma farofa?

— Sem piadas, estou com pressa, só me dá trinta gramas de pó.

— Está louco, meu irmão. Se acha que eu ando com toda essa quantidade na rua?

— Vou comprar em outro lugar então…

— Opa, pera aí, meu chapa, eu tenho o material, sou eu que tenho, mas vamos ter que ir ali buscar…

Ao chegarem no apartamento do traficante que ficava a quinhentos metros da rua onde eles estavam, uma garota drogada injetando heroína se recorda de Eddie.

Capítulo 13.

— Eddie, quanto tempo. Lembra de mim, Darcy? A gente transou no seu camarim uma vez. Naquele dia, você comeu o meu cu, me arregaçou toda, fiquei uns três dias sem andar direito, só cagando sangue.

— Acho que você está me confundindo com outra pessoa, moça.

— Claro que é você, sim, o Eddie. Não lembra de mim? Só que naquela época eu era menor de idade. Não mudei tanto assim…

— Então você tem uma banda? — pergunta o traficante.

— Não, não tenho.

— Tem, sim, o “Snow-coke”. Até hoje eu tenho o seu álbum na casa da minha mãe. Quando vai ser lançado em CD?

— Nunca vai ser lançado em CD…

— Então você tem uma banda ou não?

— Cara, só me dá a porra dessa droga que eu preciso ir embora.

— Está na mão. Agora, quando sair o seu CD, vê se autografa pra mim.

— Não sabia que jamaicanos gostavam de rock…

— Não sou jamaicano, nasci no Caribe.

— Nunca mais eu volto aqui, essa louca aí não me conhece…

— Claro que conheço, sim, Eddie, guitarrista gato do Snow-coke…

— Eu nem tenho mais banda, tá. Falou!

Capítulo 14.

Ao retornar ao seu apartamento, Becky estava vestida apenas com uma calcinha e uma camiseta, pulando na cama como uma adolescente empolgada ao som de “Smells Like Teen Spirit” do Nirvana, que tocava no rádio.

— Eu adoro essa música, vem dançar comigo antes que ela termine — disse Becky, convidando Eddie para a diversão.

Ele subiu na cama, e os dois dançaram juntos, como crianças travessas longe de seus pais. Eddie pegou algumas gramas do pó branco na palma da mão, e ela cheirou antes de lhe dar um beijo. Esse beijo marcou o início de uma noite movida a “Sexo, Cocaína, Whisky & Nirvana”. Foi uma noite intensa que nenhum dos dois esqueceu, embora Becky nunca tenha admitido plenamente seus sentimentos. Como Eddie bem sabia, mulheres eram complicadas.

Quando amanheceu, Becky agradeceu por aquela noite memorável e se despediu, pois tinha que trabalhar. Ela cheirou mais algumas gramas de cocaína para se manter acordada, enquanto Eddie, percebendo que não conseguiria dormir, tomou alguns remédios para finalmente pegar no sono. Em seu sonho, viu-se casado com Becky, vivendo em uma grande mansão no Canadá, trabalhando em um dos bancos de sua família. Quando acordou, sentiu alívio por perceber que tudo aquilo não passava de um sonho, uma vida normal que ele nunca poderia levar.

Capítulo 15.

Era o início de um novo ano e Becky, como todas as pessoas da sua idade, tinha planos para cumprir. Uma nova fase da vida estava prestes a começar, e tudo o que faltava era uma ligação que lhe diria ser o momento certo. Essa ligação definiria os próximos passos: comprar as passagens, pedir demissão do jornal em que trabalhava desde que saiu da faculdade de jornalismo e comunicar a sua mãe, que vivia na Europa, sobre sua partida de Nova York para morar e trabalhar em Seattle. A ligação aconteceu precisamente às sete e quinze da manhã. Becky, inicialmente, imaginou que em gravadoras de rock as coisas não começavam tão cedo, mas logo percebeu que a “Sub Pop” não era diferente de outras empresas nesse aspecto. No entanto, o diferencial era que ali ela poderia finalmente fazer o que amava: trabalhar com arte e música, e deixar para trás a edição da seção de horóscopo em um jornal que considerava medíocre. Seu primo, músico, havia indicado Becky para a vaga.

 Ele conhecia pessoas importantes na gravadora, e essa indicação acabou sendo bem-sucedida, com a empresa a contratando através de uma simples ligação telefônica. Becky também decidiu terminar o relacionamento com seu namorado, fazendo isso por telefone. Ele ficou confuso, sem entender o motivo, mas ela não estava com paciência para explicar. Ele era um estudante de computação e um nerd, e Becky estava cansada da vida que estava levando, Becky estava ansiosa por essa nova fase da vida, ansiosa por descobrir novas possibilidades.

Considerou a ideia de namorar uma mulher, pois sua bissexualidade era algo que mantinha guardado desde a adolescência. Ela também ponderou a possibilidade de um relacionamento com um homem mais velho, já que suas experiências heterossexuais mais gratificantes haviam sido com homens mais velhos que ela. Assim, em Seattle, uma cidade nova e com um emprego novo, Becky estava pronta para explorar novas oportunidades e aventuras. No restaurante, ela conheceu um cara atraente e simpático, um pouco mais velho e misterioso. Ela decidiu que, pelo menos por enquanto, poderia experimentar algo com ele e, se eventualmente se cansasse, estava aberta a novas experiências e possibilidades no futuro. A vida estava cheia de surpresas, e Becky estava disposta a explorar cada uma delas.

Capítulo 16.

Era noite, e Robert chegou ao apartamento de Eddie. Notou que não havia música tocando, o que era uma raridade para Eddie, que costumava dizer que “sem música, a vida seria um erro,” parafraseando Nietzsche.

— Cara, por que não tem nenhuma música tocando? Você sempre dizia que a vida sem música seria um erro, não era assim?

— Estou apenas querendo ouvir o silêncio.

— Entendi. Você está apaixonado de novo, não está?

— Sim, estou apaixonado por Becky…

— E ela está apaixonada por você?

— Talvez sim, talvez não…

— Entendo. Eu também estou apaixonado, por uma linda japonesa que começou a trabalhar na Microsoft esta semana.

Capítulo 17.

A semana havia começado. Às sete horas da manhã em ponto, Robert estava em um táxi indo para o trabalho. Sua cabeça doía, ressaca da noite anterior. A sede da Microsoft ficava a poucas quadras de seu apartamento, mas, como chovia muito, preferiu não se molhar e chamou um táxi. Ao deixar o carro, lembrou-se de que não tinha um guarda-chuva. Havia deixado o seu em cima da mesa de centro de sua espaçosa sala. “Só alguns metros para a porta de entrada, não vou me molhar”, ele pensou. Aí ele se deparou com uma bela moça. Seus cabelos negros e extremamente lisos e seu corpo pequeno e magro davam a ela um ar oriental. Quando se aproximou e olhou em seus grandes olhos, teve certeza de que aquela pequena princesa asiática era uma gueixa, e ele queria ser o seu xogum.

 Ela se chamava Akemi e havia acabado de desembarcar do Japão para ocupar um importante cargo de chefia na Microsoft. Ele retirou o seu paletó e deu para a moça se proteger da chuva. Ela agradeceu cordialmente, como os japoneses costumam fazer, e, para surpresa dele, ela falava a língua dele fluentemente. “Aqui chove bastante. Deveria ter trazido um guarda-chuva. Na correria da mudança, acabei esquecendo em algum lugar”, falou a moça japonesa para Robert. “Eu moro aqui desde criança e ainda esqueço os guarda-chuvas. A senhorita é de onde? Japão, Coreia, China?” “Japão, nascida e criada lá, mas fiz faculdade aqui, em Nova York.” “Começa hoje na empresa?” “Sim, sou a nova diretora de planejamento. E você?” “Ah, eu sou só mais um engenheiro…” “Ou seja, eu sou um mero empregado, e essa linda garota japonesa, que era para ser minha futura noiva, é minha nova chefe”, ele pensou consigo, mas preferiu ficar calado e não comentar nada.

Capítulo 18.

— Então, a garota de olhar oriental é sua chefe, e você está apaixonado por ela, quando vai sair o casamento?

— Um dia depois do seu com a tal “Becky da Sub Pop”.

— Já vi que nós dois não vamos nos casar então... Ou nascemos para ser solteiros, ou ser adulto é muito difícil para caras como nós...

Capítulo 19.

Becky estava em um bar bebendo com amigos quando comentaram tê-la visto com aquele roqueiro velho e fracassado. Ela o defendeu.

— Ele só tem trinta e três anos, nem é tão velho assim. E só está fora da cena musical porque ele quer. Andei escutando o álbum dele, e se estivesse na ativa, seriam tão grandes quanto o Nirvana. Além disso, o Eddie seria um excelente guitarrista no Soundgarden, caso o Chris Cornell decidisse só cantar.

— Já está apaixonadinha por ele? O cara é esquisito e recluso. Quando não está trancado naquele apartamento podre, está em algum restaurante com seus amigos nerds da Microsoft, ou tomando café da tarde às cinco horas. Quem faz isso?

— Não estou apaixonada, só acho que ele é fofo e legal comigo, vocês não entendem.

— Dizem por aí que ele matou a namorada no Canadá, e fugiu pra cá, e por isso que nunca mais voltou pra lá.

— Tenho amigos canadenses que disseram que ele é rico, a família dele é dona de um banco e são todos podres de ricos, e que ele é brigado com o pai. Fontes confiáveis…

— Se o Eddie fosse rico, você acha que ele viveria quebrado naquele apartamento minúsculo, e só vestiria roupas velhas dos anos oitenta?

— Becky, Kurt Cobain é milionário e ainda se veste como um mendigo.

— Se ele fosse, já teria me contado.

— O cara nunca fala da vida dele no Canadá pra ninguém? Acha mesmo que ele está há dois anos sem trabalhar e sem banda, só vivendo de resenhas de filmes podres e “trash”? Para uma mulher de Nova York, pensei que fosse mais inteligente. Se ele matou a namorada no Canadá, vai matar você também.

Capítulo 20.

Eddie não sabia de onde surgiu essa história de que ele havia matado a namorada no Canadá, até porque ele nunca matou nem uma barata na parede. Após todo aquele interrogatório de Becky, ele resolveu contar a verdade sobre sua vida e como era herdeiro de uma das famílias mais tradicionais e ricas do país vizinho. Ela acreditou, já tinha pesquisado puxando a sua ficha, só queria ouvir a verdade saindo da boca dele.

— Só falta agora saber o porquê de você ser brigado com seu pai.

— Porque ele queria que eu fosse igual a ele, e não sou…

Capítulo 21.

Quando Eddie entrou na faculdade de história, seu pai surtou. Ele queria que Eddie estudasse economia, já que iria herdar um banco. Devia entender ciências exatas e deixar as humanas para seus primos afeminados. Ele protestou e fez a matrícula, disse que já havia sido proibido de ser músico, então faria o curso que desejasse. Sua mãe o apoiou. Ela só não queria um filho músico, um historiador na família até que cairia bem, já que eles eram tradicionais no Canadá. Quando ele estava no segundo ano da faculdade, abandonou-a e foi para Seattle tocar em uma banda. Seu pai ficou furioso, os dois brigaram por telefone e nunca mais se falaram. Mas o homem não era de todo mau, só era conservador. Ele sempre depositou dinheiro na conta de Eddie e pagou seus cartões de crédito. Nunca negou aquela ajuda, já que sempre dizia que aquele dinheiro de sua família era porque o seu avô trabalhou muito, e não seu pai, que assim como ele, já nasceu rico.

Capítulo 22.

— Pais às vezes são difíceis, o meu morreu quando eu era muito nova. Minha mãe se casou de novo há alguns anos, e ele é diplomata, foi morar com ele na Europa. Não sou podre de rica como você, mas nunca tive problemas com dinheiro.

— Não sou podre de rico, o dinheiro é dos meus pais. E de que adianta todo aquele dinheiro se eles não são felizes?

— E você é feliz?

— Estou buscando me encontrar na vida, e quem sabe um dia eu encontre um sentido e a felicidade talvez venha junto. Mas de uma coisa eu sei, prefiro morrer pobre do que viver em um mundo cooperativista de terno e gravata…

— Esquece nossos pais, e toda essa merda capitalista e só me fode!

Capítulo 23.

Eles estavam juntos há algumas semanas, transando, filosofando sobre a vida, bebendo, cheirando pó e transando. Essa era a sequência, até a primeira briga dos dois surgir.

— Um dos meus melhores amigos vai se casar.

— Aquele da Microsoft?

— Isso, vai se casar com uma japonesa que acabou de conhecer, e pior, ela é a chefe dele.

— Que lindos, amor à primeira vista.

— E você acredita nisso?

— E por que não acreditaria?

— Sei lá… você acredita que eu me apaixonei por você à primeira vista?

— Talvez sim…

— E você se apaixonou por mim?

— Qual é o seu problema?

— Como assim, não entendi?

— Nós somos amigos que transam ocasionalmente…

— Rebeca, nós transamos todos os dias nas últimas semanas…

— Tanto faz… — Ela se levanta da cama e começa a se vestir.

Capítulo 24.

— Becky, aonde você vai?

— Vou sair e beber um pouco…

— Já estamos bebendo.

— Não, estamos numa conversa chata de relacionamento. Quero sair e beber com meus amigos…

— Esse é o meu problema, eu não sei fazer amigos e eu não quero ser só seu amigo, estou apaixonado por você.

— Desculpa, mas não posso mais que isso. Somos amigos, não to afim de relacionamentos sérios.

Capítulo 25.

Semanas se passaram, Eddie após aquele pé na bunda, achou sua vocação, algo que mudaria sua vida, ele já estava certo. Voltaria para o Canadá, voltaria para sua faculdade de história e se tornaria escritor. Não somente de resenhas de filmes, mas de contos e romances. Já tinha até um título para seu primeiro livro: “Era uma vez em Seattle”.

Capítulo 26.

No rádio, tocava “Black” do, Pearl Jam. Eddie adorava aquela canção. Suas frases tocavam forte o seu coração, que agora estava quebrado: “I know someday you’ll have a Beautiful life, i know you’ll be a star, in somebady else’s sky, but why? Why? Why can’t it be, oh, can’t it be mine?” aquelas palavras nunca falaram tanto como ele, como naquele momento.

Capítulo 27.

Termino esse meu relato com essa frase do célebre quadrinista barbudo britânico: “O passado não pode mais machucar você, a menos que você permita.” — Alan Moore. Isso é tudo pessoal!

Fim.

Texto por Gabriel Henrique.

Presente no livro, Violência Estilizada, 2023.

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